Seria maravilhoso que pessoas maduras, conscientes de seus desejos, descobrissem que outro formato de relação é possivelmente mais saudável e decidissem, a partir daí, experimentar um relacionamento aberto. Mas a vida não é um arco-íris, como queria o pós-créditos do vídeo do Porta dos Fundos ¹.
Os motivos que levam duas pessoas a abrirem a relação podem ser os mais variados. Regina Navarro, psicanalista que atua na área de relacionamentos e sexualidade há décadas, expõe em suas obras A Cama na Varanda e Novas Formas de Amar dezenas de relatos. Principalmente de mulheres, em que as queixas sobre casamento são inúmeras: ausência de sexo, falta de interesse pela vida do outro, sensação de estar jogando fora a própria vida, rotinas enfadonhas, traição, dependência emocional, ciúmes excessivos etc.
É possível imaginar a quantidade de brigas e discussões geradas entre casais pelos problemas citados acima. Não à toa a separação pode se tornar uma solução. De fato, o Brasil em 2021 bateu recorde de divórcios, com mais de 80 mil separações, patamar mais alto desde 2007 ². Ainda que a pandemia possa ter contribuído muito para tal aumento, não se pode negar a popularização do divórcio no país.
Algumas pessoas, porém, ao se depararem com um ou alguns desses problemas, optam por outra direção, marcada por uma insatisfação enorme com tudo que aprendemos sobre amor, sexo e vida a dois. E geralmente em meio a uma crise conjugal aparece a relação aberta como a possível saída para uma parceria abalada, jogada na mesmice ou marcada pela infidelidade.
Protagonismo feminino
Não só as reclamações vêm mais das mulheres: em relações heteroafetivas, é comum que o primeiro passo para abrir a relação seja dado por elas. Acredito que tanto o maior interesse por assuntos relacionados à vida afetiva quanto a brutal repressão que sofrem desde pequenas fazem com que elas sejam as pioneiras na ideia, o que pode ser devastador para homens quando ouvem a proposta.
Também é interessante pensar que, sendo os homens socialmente incentivados ou tolerados a estabelecer relações sexuais e afetivas fora do casamento, faz sentido que esse anseio por uma maior liberdade não surja deles, mas justamente de quem historicamente mais sofreu por essa condescendência da nossa sociedade – as mulheres.
Em trabalhos realizados em grupos exclusivos de homens, organizados em parceria com as psicólogas Adê Monteiro e Giselle Rocha, da conta Reflexões & Conexões Não Mono, foi constatado que, ao saberem da vontade da parceira por uma vida a dois sem exclusividades, eles podem se sentir desamparados, pouco amados e, de vez em quando, veem-se associados à tradicional figura do corno.
Por outro lado, também é verdade que os homens que procuram tais grupos geralmente possuem algum grau de envolvimento com leituras feministas e já entendem a masculinidade tradicional como nociva, que precisa urgentemente ser revista. Isso é um ótimo primeiro passo para saber lidar com uma proposta de relação aberta vinda de uma parceira.
Acordos: por que não temos isso na monogamia?
No livro Ética do Amor Livre, os “acordos não declarados de comportamento” são colocados como condutas em relacionamentos que não precisam ser explicitamente explicadas para que sejam cumpridas. As pessoas simplesmente agem daquela maneira, já que observaram outras pessoas agindo de forma semelhante.
Relações monogâmicas, em geral, seguem esse padrão. Como todas as pessoas envolvidas ali já sabem as regras de exclusividade – e como essas regras determinam boa parte das permissões e proibições da monogamia –, às vezes não há muito o que conversar. O não dito já diz tudo.
Não é, portanto, que não existam acordos na monogamia; eles apenas não são, na maior parte das vezes, colocados nitidamente na mesa. E quando esse padrão de “nãoconversa” se choca com um relacionamento aberto, o abalo costuma ser grande. De repente, a conversa é o que você tem de mais precioso para firmar acordos, colocar seus limites e entender do que sua parceria precisa.
Mas, afinal, o que são esses acordos? Existe uma lista pré-determinada deles? Todos são eticamente corretos? Abaixo seguem 7 exemplos que são vistos com certa regularidade em relações abertas.
Envolvimento exclusivamente sexual
Nada de amar. A proibição de vínculos afetivos profundos e duradouros é uma marca presente em relações abertas. Não que haja uma regra universal proibitiva, mas a maioria dos RAs, ainda que inicialmente, costuma permitir apenas envolvimentos sexuais, pontuais, não estáveis.
Daí o ménage e as casas de swing fazerem tanto sucesso para pessoas em relações nesse formato. A garantia de que seja “só sexo”, “só por uma noite”, confere ao par a tranquilidade de que sua relação não será abalada.
Esse acordo demonstra a centralidade da figura do casal: ela é a entidade de maior valor nas relações abertas.
DADT
Do inglês “Don´t ask, don´t tell” (“Não pergunte, não fale”), esse acordo proíbe expressamente que o casal compartilhe com quem está se envolvendo fora do casamento. E isso não se reduz meramente ao nome: intimidades, desejos, sentimentos relacionados a uma terceira pessoa não podem ser mencionados. O que os olhos não veem (e os ouvidos não escutam) o coração não sente.
O pacto DADT costuma ser justificado pela dificuldade que a pessoa tem de lidar com o envolvimento de sua parceria romântica com outra pessoa. “Sou muito ciumento, não aguentaria saber o que de fato rola entre eles”, dizem.
Isso pode gerar alguns problemas. A pessoa pode saber por terceiros de um envolvimento de sua parceria afetiva, o que não é nada agradável e pode gerar um sentimento de ter sido enganado, quando na verdade o que aconteceu foi o simples cumprimento de um acordo.
Contar tudo
Ao contrário do DADT, aqui o casal em RA é obrigado a partilhar cada detalhe de envolvimento com terceiros. Em completo desrespeito à intimidade das outras pessoas envolvidas na dinâmica daquele par central, a relação principal funciona praticamente como um confessionário, com apresentação de relatórios constantes e sem espaço para o natural desenvolvimento de relações.
Ficar só com mulheres
Reclamação muito comum de mulheres em relações heteroafetivas, tal acordo é a perfeita manifestação do machismo em RAs. A proibição de envolvimento com homens – eles acreditam – é o limite do que sua masculinidade consegue suportar. E, assim, a histórica repressão afetiva e sexual sobre as mulheres se mantém intacta.
Não que hoje mulheres estejam ávidas por se relacionarem com homens. A amostra não ajuda muito, não é mesmo? Mas, independentemente disso, é óbvio o absurdo do acordo. Privar alguém de se relacionar com base no gênero deveria ser motivo de vergonha para todos que propõem isso.
Prioridade em datas festivas
Quando uma terceira pessoa começa a fazer parte da vida do casal (ou de uma das partes), é comum que surjam conflitos em relação ao comparecimento em eventos, festividades e datas importantes.
É aí que a entidade casal aciona seus mecanismo de prioridade e determina que qualquer data importante será desfrutada, primeiramente, pelo casal. Se não for assim, haverá nítida e expressa autorização para que outra pessoa seja incluída nesses espaços.
Tal acordo visa manter a centralidade do casal enquanto relação primária, como se fosse a única que importa de ser mantida e alimentada.
Passar sempre a noite juntos
Dormir? Só em casa – e do meu lado.
Para alguns, soa como completo pavor a remota possibilidade de que a parceria afetiva passe a noite fora de casa. Tido por muitos como um momento máximo de intimidade, em que carinhos e conchinhas são trocados, ainda que haja autorização para que o companheiro ou a companheira caia na gandaia a noite toda, o ronco está obrigatoriamente ligado a um momento exclusivo do casal.
Poder de veto
Por último, talvez como o representante máximo da centralidade do casal na relação aberta, o poder de veto diz respeito à possibilidade, eticamente discutível, de que a parceria afetiva proíba, sem necessidade de muita explicação, qualquer envolvimento, saída ou date de seu par romântico.
Isso coloca, evidentemente, todas as pessoas que orbitam em torno do casal em uma posição muito vulnerável, o que faz com que muitos questionem, hoje em dia, até que ponto vale a pena se envolver com pessoas em RA.
Assimetria naturais e seus desdobramentos
Pessoas são diferentes, mas não só: como diz a pesquisadora Geni Núñez, não somos a mesma pessoa a vida toda, de modo que o princípio monogâmico de que amaremos a mesma pessoa até que a morte nos separe já não pode ser sustentado.
Mudamos, nossos desejos se transformam, eventualmente nos perdemos e nos achamos de novo. Estamos em constante movimento.
Isso produz, obviamente, seres humanos distintos, múltiplos e, quando as pessoas se juntam em uma relação afetivo-sexual, é comum que as assimetrias fiquem cada vez mais evidentes, conforme o passar do tempo.
Por isso, é muito importante que, quando os acordos forem firmados, essas assimetrias entre as pessoas envolvidas estejam levadas em consideração. Alguns precisam de mais conexões com outras pessoas, outros se satisfazem com pouco; as linguagens do amor podem ser diferentes para cada um, bem como as necessidades emocionais de segurança dentro de uma relação.
Entender que somos diferentes pode ajudar a evitar sentimentos de disputa no casal e a estabelecer acordos justos – e não necessariamente iguais.
Acordos precários são os melhores acordos!
Dizem que acordos são feitos para serem quebrados. Todo acordo é uma tentativa de normatizar um fato que acontece na vida. Portanto, ter em mente que a vida é mais complexa que seus respectivos acordos funciona bastante na relação aberta.
É impossível conter toda experiência humana – ainda mais em relações abertas! – em um conjunto de fazer ou não fazer.
Se um casal topa adentrar esse tipo de relação, tonar-se interessante certo grau de maturidade, que faça as pessoas envolvidas entenderem que acordos são temporários, genéricos, abertos – por mais que tentem esmiuçar as experiências do cotidiano.
Bons acordos têm uma boa noção de suas limitações.